Impressões da Serra dos Órgãos no século XIX


A estrada sobe pouco a pouco; quando ao anoitecer, depois de passarmos por cima de morretes com matagais, chegamos ao sopé da montanha, o guia hospitaleiro saudou-nos no seu próprio território. O Sr. von Langsdorff havia apenas começado a cultivar esta fazenda, que tem a extensão considerável de mais de uma légua quadrada, mas que havia ficado inteiramente no abandono.
A beira da estrada havia um rancho espaçoso para acolher as freqüentes tropas, um botequim de cachaça, um moinho de fubá de milho e uma casa pequena do dono, construída segundo o costume local. Estas pequenas vivendas rurais consistem em algumas peças sem adorno, levantadas sobre o chão frio, com janelas de grades ou venezianas; o telhado, em geral, sobressai num lado de alguns pés das paredes, e forma, apoiado sobre pilares e um muro baixo, a varanda. Na maioria das vezes constroem-se essas casas com ripas amarradas por cipós, e são rebocadas com barro e caiadas. O solo barrento presta-se, por toda parte, para fabricar boas telhas, ou quando estas parecem muito caras, as folhas largas de diversas palmeiras fornecem uma cobertura, na verdade leve, porém bastante à prova de água.
A natureza generosa oferece aqui todo o material necessário em profusão, e somente a cal é trazida de Cabo Frio. A Fazenda da Mandioca é assim chamada por causa da excelente mandioca que cultiva. A noroeste, limita-a uma serra cortada por diversas grotas e coberta por floresta que se espalha desde o vale até aos mais altos cumes da Serra dos Órgãos.
Rugendas, 1824
No meio do mato virgem, estão as roçadas, plantadas após a queima das árvores pelo fazendeiro, com mandioca, milho, feijão, café, etc. Essas roças, em geral abandonadas ao cabo de algumas colheitas, se cobrem, no fim de poucos anos, de capoeira fechada, que se distingue em particular pela ausência de grandes árvores de lento crescimento. As matas densas, que existem como testemunho da força criadora do Novo Continente na sua primitiva selvajaria, e ainda não profanadas pelo homem, chamam-se no Brasil "mato virgem". Dentro dele, o viajante sente a frescura européia, ao mesmo tempo avista um painel da máxima opulência; vegetação eternamente nova impele as árvores para altura majestosa e, não satisfeita de haver produzido esses gigantes velhíssimos, a natureza enfeita cada tronco com uma nova criação de muitos parasitas verdes e floridos. Quase cada um desses príncipes da floresta, que estão juntos um do outro, se destaca no conjunto dos seus vizinhos.
A partir da Fazenda da Mandioca, segue a estrada para tropas, que conduz a Minas Gerais, ladeada por grotescas hastes de piteiras (Fourcroya gigantea Vent.) e sebes de flores variadas, pela mata virgem, por íngremes ladeiras em gargantas apertadas, cobertas de vegetação até ao cume da montanha, para o qual existe uma custosa estrada calçada, até agora a única no Brasil, que tem a extensão de quase uma milha. No fim dessa estrada acaba também a possibilidade de utilizar carros, que no terreno desigual só com muito risco poderiam ser conduzidos. No Brasil, cuida-se tão pouco de facilitar o comércio com estradas carroçáveis, como na Alemanha com a construção de estradas de ferro, pois o transporte das mercadorias sobre mulas basta para as necessidades dos habitantes.
A penosa estrada aberta em 1723
Do cume da montanha, a chamada Serra da Estrela, com 3.376 pés franceses acima do mar, avista-se a baía com as suas virentes ilhas e a capital no fundo. O lado oposto oferece mais limitada vista, terreno de colinas, muito desigual, coberto de matas fechadas, que se estende daqui até à margem do Rio Paraíba.
A estrada na montanha segue do lado do Norte, primeiro para Córrego Seco, um pobre povoado, elevado 2.260 pés franceses acima do mar. Aqui pernoitamos uma vez, na miserável venda, que nos deu plena idéia dos incômodos de uma viagem para o interior. Como manjar tivemos farinha de mandioca, carne de vaca dura seca ao sol, como cama, um banco duro sem almofada nem coberta, pondo à prova a paciência e aptidão para uma campanha de cada um.
À noite, se fosse na Alemanha, seria uma das mais belas de verão, pois o termômetro nunca baixou além de 14° R.; entretanto, foi-nos quase impossível conciliar o sono pela sensação de frio. É fato tão singular, como comumente observado, que basta viver apenas alguns meses num clima quente para que o organismo adquira uma extraordinária sensibilidade para as variações da temperatura. Provém isto, provavelmente, da maior atividade do sistema nervoso, conseqüência natural do forte estímulo da luz e do calor.

Essa intensidade do impulso e a vivacidade de todas as atividades orgânicas durante o dia, produzem, com a entrada da noite, considerável relaxação das forças orgânicas, de sorte que só a frescura pode restituir aos membros extenuados um novo alento. Assim como o sol nestas latitudes age com maior força sobre o planeta do que acontece entre nós, e por isso durante o dia toda a natureza está, por assim dizer, mais despertada, também logo que o sol se esconde no horizonte, mais profundo é o descanso e mais pesado o sono.
De Córrego Seco fomos seguindo a estrada por uma região alta, sulcada, limitada em parte por maciços de granito; passamos por Belmonte e alcançamos finalmente a fazenda do Padre Correia, a quem, de passagem por Mandioca, havíamos conhecido. Este digno sacerdote, brasileiro nato, é, pelas suas atividades agronômicas, um exemplo para os vizinhos. Demonstrou ele, pela plantação de grandes viveiros, que o clima mais frio desta região alta é favorável ao cultivo de frutas européias. Em suas plantações sobretudo amadurecem figos, pêssegos e uvas, e de fato em tal profusão, que o fazendeiro abastece com elas o mercado da capital, auferindo grandes lucros anuais. Outra atividade proveitosa fundou este homem empreendedor, baseando-a na habilidade de seus escravos muito humanitariamente tratados, a do fabrico de ferraduras e outros utensílios com o emprego de consideráveis quantidades de ferro sueco. Aqui encontramos, pela segunda vez, o riacho da montanha, o Piabanha, que, embora bastante volumoso, não é navegável por causa de seu leito rochoso até à foz no Paraíba, que vem de longe, de São Paulo. Passando por outeiros de gnaisse e granito que são cobertos por uma camada de barro vermelho, chegamos de noite ao Sumidouro, lugarejo de poucas casas no meio do mato, situado na nascente de um córrego da montanha. Acolheram-nos hospitaleiramente e deram-nos a informação de que daqui ainda distava meio dia de viagem. O Destacamento do Paraíba, onde todas as tropas, que saem de Minas Gerais, são rigorosamente revistadas, por causa do contrabando do ouro como também o são os passaportes de estrangeiros em caminho para o interior da terra do ouro. Para evitar esse exame, rumamos pelas matas espessas, desertas de gente, só até uma fazenda solitária situada não longe do Paraíba. Depois de nos termos restaurado e obtido todas as informações interessantes tanto do dono da casa como de uns mulatos do Registro do Paraíba, que patrulham armados de fuzil e sabre, fizemos os preparativos para a viagem de volta e chegamos de novo, passando por Sumidouro, à fazenda do Sr. von Langsdorff.
Georf Heinrich von Langsdorff
Durante a nossa estada na Mandioca foi o nosso amável anfitrião visitado por vizinhos, que olhavam com assombro e não sem inveja para os rápidos progressos de seus empreendimentos.
Fazenda da Mandioca, na Raiz da Serra, transformada mais tarde em Fábrica de Pólvora. Desenho sem data.

*Extraído do livro Viagem pelo Brasil (1817-1820) - Spix e Martius

Download do livro aqui!

7 comentários:

  1. Achei seu blog muito interessante! Eu estava no Google Earth olhando as montanhas de Petrópolis e vi que as fotos dos lugares mais legais eram suas. Vi sua galeria no Panoramio e vim parar aqui. Eu adoro caminhadas e trekking mas não tenho quase experiência nenhuma e nem sei por onde começar. Então eu tenho uma sugestão, seria mesmo muito legal se você fizesse um post voltado para os iniciantes com dicas e essas coisas.

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  2. Muito obrigado FranKloh, fico feliz que tenha gostado das fotos. Você é de Petrópolis? Se quiser fazer uma caminhada qualquer dia é só falar, estamos sempre indo em algum lugar.Abraço!

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  3. Parabéns pelo Blog, muito bom e certamente está contribuindo para o aumento do conhecimento histórico de todos que por aqui passam.

    Gostaria de fazer o download do livro, mas infelizmente o mesmo encontra-se inativo. Poderia disponibilizá-lo novamente?
    Grande abraço!

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  4. Parabéns pelo Blog, muito bom e certamente está contribuindo para o aumento do conhecimento histórico de todos que por aqui passam.

    Gostaria de fazer o download do livro, mas infelizmente o mesmo encontra-se inativo. Poderia disponibilizá-lo novamente?
    Grande abraço!

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  5. Parabéns pelo blog, muito bom!
    Infelizmente o link para download do livro está quebrado, poderia me indicar outro?
    Um grande abraço!

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  6. Muito bom seu blog, parabéns!
    Poderia refazer o upload do livro, pois o link encontra-se quebrado.
    Meu muito obrigado.

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  7. Ao visitar a Estrada Velha(Estrada Real), visite também o Botequim Imperial.

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